Data de publicação: 16-06-2020 13:56:00 - Última alteração: 16-06-2020 14:01:24

Covid-19: O que faço com esses números?

Centro de Integração Empresa Escola de Minas Gerais -  CIEE
Foto: Internet/Reprodução
 
Rui Miguel*
 
“Quando você está trabalhando para os outros, que seja com o mesmo zelo como se fosse para você mesmo.”
 
Confúcio
 
Felipe era um rapaz fantástico. Era educado, trabalhador e estava sempre perto da família. Estava noivo e ia se casar. Já estava planejando tudo: a igreja, a festa e até uma esposa ele conseguiu, o que, segundo os amigos mais íntimos, seria o mais difícil.
 
Ele trabalhava como engenheiro civil e há pouco tempo foi admitido em uma grande construtora, que o chamara para administrar algumas obras.
 
Felipe era engraçado, não perdia nenhuma piada, mesmo que isso ofendesse os amigos. Era um dos grandes defensores de que nós devíamos rir dos nossos problemas. Amava conversar com estranhos. Todos gostavam de estar perto dele.
 
A única coisa que me incomodava é que ele fumava.  Não tenho nada contra o cigarro, mas também não tenho nada a favor. O que me deixava com raiva é que ele fumava dentro do carro e o cheiro ficava impregnado na minha roupa. Porém, a companhia sempre valia a pena.
 
Era um rapaz bonito e o sonho dele era ter dois filhos com a Magda, que, segundo ele, era a mulher da sua vida e por quem ele morreria.
 
Eram duas e meia da manhã de quarta-feira quando o meu telefone tocou. Eu tinha acabado de voltar de uma viajem a trabalho que me tomou três dias daquela semana. Demorei a atender, pois o sono estava pesado por conta do cansaço. Antes de chegar ao telefone, ele parou de tocar. Meio sonolento e meio embaraçado para tocar a tela do celular, não conseguia ver quem tinha ligado.
 
Nesse meio tempo, o telefone tocou outra vez, e, como ele já estava em minhas mãos, eu logo atendi, vendo que era a mãe do Felipe. Fui logo perguntando:
 
- Aconteceu alguma coisa? Está tudo bem?
 
- Ele se foi. O nosso Felipe se foi.
 
Na mesma hora imaginei que ele estava fugindo do casamento, que provavelmente havia tido um ataque de pânico, pego o carro e sumido. Perguntei:
 
- Que horas ele saiu? Foi hoje? Foi de carro? Vou pegar o meu carro agora e ir atrás dele.
 
Mas não era isso, e, com uma voz ainda mais pesarosa, ela confirmou:
 
- O nosso Felipe faleceu.
 
Eu não sabia como processar aquela informação. Era tudo muito surreal. Eu simplesmente paralisei, não consegui falar mais nada. Deixei o celular cair e fiquei ali, estagnado, por mais de cinco minutos, e só consegui sair daquele transe psicológico quando o telefone voltou a tocar.
 
Recobrei a consciência, peguei o telefone e logo a mãe de Felipe completou:
 
- Ele estava com Covid-19. A doença avançou e os pulmões não aguentaram a intubação. Apenas três dias internado e ele morreu.
 
Amigos leitores, Felipe tinha uma história de vida a contar – a infância, a adolescência, a primeira namorada, o primeiro carro – e tinha um futuro para escrever. Até quando vamos tratar os mortos de uma pandemia por números? Até quando Felipe será apenas um valor estatístico para o governo? Desde quando morrer 500 pessoas me deixa aliviado, pois foi bem menos do que ontem?
 
Quando ligo a TV de manhã e a primeira matéria que vejo é que no dia anterior morreram 1.200 pessoas no Brasil, em menos de 24 horas – e acabamos tratando disso com futilidade, como apenas números expressivos que mostram a realidade –, me sinto triste ou decepcionado.
 
Só vamos sentir o peso das estatísticas quando essa aritmética cair sobre a nossa cabeça como doença ou como a perda de um pai, de uma mãe ou de um filho.
 
Não são apenas 1.200 pessoas que morreram. Foram 1.200 histórias de vida, histórias reais, como a minha e a sua. Não foi um milhar de mortos, mas mil vidas ceifadas de pessoas que estariam vivas com seus parentes, com seus filhos, estariam rindo, brincando, estudando, dançando, amando e, agora, tornam-se apenas mais uma na lista.
 
- Anota aí: mais um que morreu na pandemia. Qual o nome dele?
 
- Não sei, não importa. É só mais um. Precisamos apenas catalogar.
 
E aquela vida repleta de sonhos e desejos passa a ser apenas o número 1.217 daquele dia porque ninguém se importa.
 
Quando é que o governo ou os nossos governantes vão entender que não somos apenas números, somos vidas de carne e osso?!
 
Quando a jornalista diz na TV que o Brasil está em segundo lugar em número de infectados no ranking mundial, mas está em terceiro na lista de mortos pela doença – porém, se fôssemos ver pela densidade demográfica, estaríamos em 19º lugar –, eu, sinceramente, me sinto como se estivesse no mês das Olimpíadas e eles, da TV, apresentando o quadro de medalhas, só que agora com os valores invertidos.
 
Não importa em que posição estamos, temos que nos dar conta de que esse é um prêmio que não queremos ganhar. Apenas entendemos o jogo quando estamos dentro dele. Ele somente nos envolve quando precisamos jogar. Apenas nos importamos quando é conosco.
 
Não deixe que os números, as estatísticas e a forma vazia como alguns veem a vida de outros enrijeçam seus sentimentos. Não deixe que a sua mente se acostume com uma matança desenfreada e sem sentido.
 
Nós, humanos, já passamos por muitas guerras, muitas pestilências, muitos desastres naturais e muitas situações capitais, e continuamos a crescer e a nos tornar mais fortes. E é para isso que esse momento serve, para aprendermos com os nossos erros, evoluirmos e sermos superiores, mas nunca deixando a nossa “humanidade” de lado, não deixando que a vida de um Felipe seja apenas mais uma que foi embora e virou um X no quadro.
 
Todos precisam entender que a vida de cada um é preciosa e independe do que eu fui, sou e serei. Nenhuma vida é mais preciosa do que a outra e você não vale mais do que ninguém.
 
--
 
*Rui Miguel cresceu em Contagem. É formado em engenharia de rede de computadores e especialista Microsoft. Tímido e paradoxalmente extrovertido. Misterioso e intrigante, mas com um senso de humor incrivelmente inteligente e sarcástico. Em 2007, teve os primeiros sintomas do Parkinson e, depois de seis meses, o diagnóstico foi confirmado. É autor do livro “Entrando no parkinson de diversões” e, em 2017, foi nomeado comendador e profissional do ano com o blog que fala sobre “como viver a vida e não apenas sobreviver” (www.ruimiguel.com.br). Também possui um canal no YouTube onde trata do mesmo assunto.
 
(O conteúdo dos artigos publicados pelo Diário de Contagem é de responsabilidade dos respectivos autores e não expressa a opinião do jornal.)
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