Data de publicação: 26-09-2014 00:00:00

Lazer, uma brincadeira Constitucional

Academia Equilíbrio Funcional

Ilustração: Divulgação

¹Filipe Regne Mamede
²Neiva Schuvartz

Joãozinho, que acabou de fazer 18 anos, é rapaz sério e lutador. Filho de seu José, servente de pedreiro, e Dona Maria, faxineira, mora com mais 5 irmãos num casebre em Ribeirão das Neves. Todo dia sua labuta começa às 5 da matina, saindo da cama mal dormido e correndo pro banho. Se demora muito, perde o ônibus das 6 e atrasa pro trabalho, que lá pouco tolera atrasos. Atrasar é coisa de vagabundo, que não se importa com a seriedade do trabalho que deve fazer.

Ao pegar o coletivo, no horário, segue por quase duas horas de trajeto, em pé, com o braço permanentemente apoiado naquelas barras insalubres. Apesar de que, se lhe calhasse, nem precisava segurar. O coletivo anda tão cheio, que se soltasse o apoio fixo, permaneceria apoiado pelos corpos humanos da superlotação do transporte. Depois de trancos e barrancos, chega ao trabalho já cansado, ainda com sono e com o cheiro de quem não tomou banho, mesmo tendo tomado.

O horário de almoço é curto, dando mal pra comer, quiçá pra digerir. Se demorar mais que quarenta minutos, Joãozinho levará um pito do chefe e pode até perder o emprego. Anda tão avoado que já está na corda bamba. Ao fim do dia de trabalho, mais um coletivo até a faculdade e o tão sonhado curso de Direito. Aquela única luz de um futuro melhor na vida de Joãozinho. Após o fim das aulas, mais uma hora de coletivo e meia noite bota os pés em casa. Pouco conversa com a mãe, contando o dia, e já corre pra cama que o “amanhã” bate na porta. Falta pouco pra mais um dia de labuta.

A estória de Joãozinho se repete indistintamente pelas cidades brasileiras. Aos milhares, diríamos. As circunstâncias são árduas, mas todos olham com orgulho para Joãozinho e dizem que é um exemplo! A sua luta diária mostra o melhor do caráter humano. Coitado, nasceu em circunstâncias tão difíceis, mas se esforça - ou será que sofre? - por um futuro melhor para si e para a família. Aqui calha a pergunta: Será que temos de sofrer por um futuro um pouco melhor? A realidade têm nos dito que sim.

Já na utopia constitucional, a realidade deveria ser outra. Nosso lindo - e fictício - texto constitucional diz em seu art. 6º que todos temos direito ao lazer, complementado pelo art. 217, § 3º, que impõe ao Poder Público a obrigação de incentivar o lazer, como forma de promoção social. Ainda temos o art. 227, que diz ser “dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão”. Acho que falhamos, todos, com Joãozinho.

Nossa sociedade está em clara decadência. Os valores andam tão subvertidos, que apontamos como belo o esforço descomunal de Joãozinho e tachamos de vagabundo aquele que ousa valer-se de seu direito constitucional de descanso e lazer. Aquele que não faz hora extra, que não trabalha o dia inteiro, abdicando de família, filhos e amigos, é apenas um encostado qualquer, que não ‘quer saber de nada com a dureza’. O trabalho dignifica o homem, isso é fato. Mas será que não há espaço para as outras coisas?

Nos matamos de tanto trabalho pra quê? Pra muitos, é questão de um salário mínimo que, como dita a Constituição, deveria ser “capaz de atender a suas necessidades vitais básicas e às de sua família com moradia, alimentação, educação, saúde, lazer, vestuário, higiene, transporte e previdência social”. Agora, pausa para a sensatez: ‘Ahn!? Isso tudo com R$ 724,00 ao mês? Acho que quem escreveu esta Constituição não vivia no mesmo Brasil que eu!’.

A triste realidade é que, à exceção dos que se divertem com seu trabalho, idealismo que não podemos exigir de todo mundo hoje em dia, o direito ao lazer não passa de uma brincadeira de mau gosto, repetida tantas vezes em nossa mais alta e importante Lei, a Constituição.

¹Filipe Regne Mamede é Mestre em Direito, Professor e Coordenador do Núcleo de Pesquisa da Nova Faculdade e sócio do Escritório Mamede & Mamede Advogados.

²Neiva Schuvartz é Mestre em Direito do Trabalho, Professora da Nova Faculdade e sócia do Escritório Schuvartz Guimarães Advogados Associados.

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